PPP do saneamento traz enormes riscos para municípios e usuários

Mais uma prova de que o SINDIÁGUA não está sozinho quando critica o projeto de PPP da Corsan para a Região Metropolitana de Porto Alegre, que nada mais é do que uma doação de dinheiro público à iniciativa privada.

Confira abaixo a entrevista que ex-presidente da Companhia e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Dieter Wartchow concedeu ao ao jornalista Marco Weissheimer, do Sul 21.

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A proposta de Parceria Público-Privada apresentada pelo governo José Ivo Sartori (PMDB) para executar obras de esgotamento sanitário em municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre é um excelente negócio para as empresas privadas e para os acionistas da Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento), mas apresenta enormes riscos para os municípios e para os usuários.

O alerta é de Dieter Wartchow, ex-presidente da companhia e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Wartchow elaborou um estudo sobre a proposta de PPP apresentada pelo governo Sartori. Para ele, essa proposta apresenta vários erros de abordagem, no uso dos indicadores, é incompleta e oferece riscos aos usuários que terão que pagar mais e arcar com os custos das ligações de esgoto.

Em entrevista ao Sul21, Dieter Wartchow fala sobre o estudo que realizou, detalha os riscos do projeto e aponta um total desconhecimento, por parte dos prefeitos das cidades envolvidas, desses riscos e também das receitas potenciais às quais seus municípios abrirão mão. “Há riscos enormes. Os municípios abrem mão de potenciais receitas e os usuários pagarão mais, pela falta de conhecimento de prefeitos e vereadores que autorizarem a PPP como proposta”, afirma. Já a empresa que vencer a licitação, acrescenta, terá um superávit de aproximadamente R$ 6 bilhões nos 35 anos de contrato previstos na proposta.

Sul21: Você elaborou um estudo sobre a proposta de Parceria Público Privada na área de saneamento, elaborada pelo governo Sartori para a Região Metropolitana de Porto Alegre. Como definiria essa proposta?

Dieter Wartchow: Em primeiro lugar, é importante assinalar que o governo federal elaborou todo um marco legal nesta área, envolvendo a questão das terceirizações e a participação de parceiros privados em investimentos. Toda a estratégia política do governo Temer na área de saneamento está centrada na abertura de potenciais mercados para o setor privado nesta área do saneamento. A partir da definição dessa estratégia, o BNDES e a Caixa Econômica Federal começaram a incentivar estudos de viabilidade para a realização de PPPs, visando equacionar um problema de caixa dos Estados. A ideia é repassar patrimônio ou um serviço rentável para o setor privado, tirando o Estado da atividade-fim nesta área, ficando restrito basicamente ao trabalho de fiscalização e da regulação.

Vinha tomando formando uma ideia, desde o governo Tarso, de abrir a possibilidade de participação do setor privado nesta área do saneamento. O governo Sartori decidiu efetivar essa ideia e, com apoio da Caixa Econômica Federal, contratou a empresa de consultoria Price Waterhouse para fazer a modelagem desta PPP, visando incrementar o serviço de esgoto sanitário em nove municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre. Com base nas justificativas e nos benefícios apresentados, resolvi dar uma olhada nos documentos desta proposta. A Corsan fez todo um trabalho de mídia, dizendo para a sociedade gaúcha que esse era o caminho.

Eu tenho lado. Sempre defendi a gestão pública na área de saneamento básico por entender que, tanto o acesso a uma água segura quanto ao saneamento, são direitos. Esses direitos expressam algo essencial para a organização das cidades e para a qualidade de vida nas cidades. Não se pode abrir mão de políticas públicas nas quais a participação da sociedade é decisiva. Ela precisa estar informada sobre esses temas, afinal ela é que vai pagar a conta.

Na leitura da proposta da PPP comecei a perceber vários problemas. Primeiro, dizem que a Corsan e o Estado não têm capacidade de investimento. No entanto, essa proposta já vinha sendo preparada desde o ano passado através de uma mudança na estrutura tarifária aprovada na Agergs. Foi uma aprovada uma estrutura de tarifa na qual qualquer cálculo elementar mostra que há viabilidade para investimentos. Ao invés de entregar esse serviço para os municípios, que poderiam compartilhar e dividir receitas, resolveram entregar para o setor privado. O secretário de Obras chega a comentar que uma das possibilidades era compartilhar o serviço com os municípios, que é onde as coisas acontecem. Muito se fala sobre as dificuldades financeiras dos municípios, mas os prefeitos não sabem quanta receita tem aqui dentro.

Sul21: Poderia detalhar como os municípios poderiam incrementar suas receitas se compartilhassem o serviço de saneamento com a Corsan?

Dieter Wartchow: No caso da Corsan, a água é cobrada pelo que é medido pelo hidrômetro. O esgoto também vai ser cobrado pelo que é medido sobre o consumo de água. Ou seja, o mesmo volume de água será cobrado a título de esgoto, mas o valor unitário é um pouco menor. Por isso é que se fala que representa 70% do valor da receita da água. Na realidade, a água hoje é superavitária e o esgoto também o será. Os cálculos matemáticos mostram que o Estado poderia ter bilhões de reais ao longo de 35 anos para efetivar a política de saneamento básico, sem onerar o usuário.

Sul21: Isso só com os recursos da tarifa?

Dieter Wartchow: Sim, só com a tarifa, que também amortiza investimentos. O governo do Estado está pleiteando um empréstimo do BID, o que representa um fato novo. Para tanto, o governo federal está exigindo que a Corsan coloque receitas e tarifas como garantias. Isso também é algo a ser questionado até porque não foi conversado com os municípios. Não há uma estratégia política de gestão por parte da Corsan dizendo em quais municípios vai investir e como isso vai ser feito. Os municípios, hoje, estão reféns desses contratos e do sistema Corsan. Os prefeitos não conseguem fazer a leitura nas entrelinhas de um documento técnico como esse das PPP’s.

É preciso entender os números e a relação entre eles. É preciso entender, por exemplo, a relação entre os volumes medidos de esgoto e os volumes medidos de água. Ao analisar esses números e relações, temos um resultado que difere da afirmação que eles fazem, garantindo que irão universalizar o esgoto sanitário. Nas tabelas que eles próprios apontam nos documentos as unidades de medida estão erradas, o que leva a erros de interpretação. Em segundo lugar, o percentual de atendimento de esgoto calculado com base no volume medido de esgoto a ser faturado é de 43,52%, ou seja, ainda vai faltar um bom pedaço, mais da metade se formos considerar os 100%.

O mais estarrecedor está relacionado aos benefícios que as PPP’s trarão aos municípios. Segundo a proposta apresentada, a empresa privada vai investir R$ 1,85 bilhões ao longo de dez anos e vai operar o sistema com mais R$ 1,4 bilhões, totalizando cerca de R$ 3,2 bilhões. Por outro lado, ela vai receber, conforme está estabelecido em cláusula contratual, R$ 9 bilhões. Essa informação é capital.

Sul21: Em que período ela vai receber esses R$ 9 bilhões?

Dieter Wartchow: Nos 35 anos do contrato. Isso é uma máquina de fazer dinheiro. Os balanços e fluxos de caixa incluem a taxa de retorno da empresa privada, os benefícios dos acionistas, da empresa e as taxas do governo estadual. Considerando tudo isso, são 30% só de valores que não serão investidos na área do saneamento. Além disso, existe bitributação, ou seja, a Corsan e a empresa privada pagarão impostos que perfazem cerca de 40%, envolvendo PIS, COFINS, PASEP, Fundo de Garantia, INSS e Imposto de Renda. Então, na realidade, o benefício não vai ser aquele esperado para os municípios que delegaram a atividade de saneamento para a Corsan.

Hoje, se a gente percorre o Estado, vê que há uma grande demanda, em termos de água, no meio rural. Mas os custos aí são menores e os esgotos são sistemas simplificados. Os custos maiores estão na Região Metropolitana e não no interior onde os municípios são pequenos e as soluções são factíveis. Essa questão do balanço dos recursos nos preocupa muito. Na realidade, você está tirando dinheiro de uma faixa de usuários de renda mais baixa, levando em conta a população de periferia da Região Metropolitana.

A modelagem proposta exigirá que as populações paguem as suas ligações de esgoto. Uma ligação de uma casa, que tem o esgoto para a rede pluvial nos fundos, custa cerca de 3 mil reais. Se a pessoa não fizer essa ligação, ela vai ser multada. Isso oferece riscos à Corsan, inclusive do ponto de vista de questionamentos jurídicos, em função da dificuldade para a população de baixa renda fazer suas ligações às redes. E esse não é um universo pequeno. Estima-se que chegue a 50% do que se pretende fazer.

Além disso, a Corsan vai fazer investimentos iniciais da ordem de R$ 850 milhões com recursos do PAC, envolvendo empréstimos e recursos próprios. Ela vai deixar toda a estrutura pronta para a empresa privada. Esta terá que fazer os arranjos e as extensões de rede. A estrutura principal já estará pronta. Por isso que eu digo que os municípios têm condições, junto com a Corsan, de gerenciar esse processo. Você precisa visitar casa a casa para explicar onde passa a rede e a necessidade de fazer a conexão. Se a pessoa não tem dinheiro, essa ligação pode ser feita com o dinheiro dos R$ 6 bilhões de superávit que o contrato estima. Essa é uma questão ambiental, não comercial. Saneamento é saúde pública e melhoria da qualidade de vida do meio ambiente das nossas cidades.

Sul21: Considerando essa estimativa de superávit de R$ 9 bilhões ao longo de 35 anos, trata-se de um ótimo negócio para o setor privado…

Dieter Wartchow: Sim. Sempre. Não há nenhuma PPP que sobreviva mais do que dez anos. Neste período de 35 anos, as empresas provavelmente mudarão de acionistas, como aconteceu em Uruguaiana. Lá, ocorreu uma privatização do serviço de água e, recentemente, a Lava Jato apontou os atos de corrupção que ocorreram neste processo, envolvendo vereadores e o prefeito. A tarifa da água aumentou e as metas não foram alcançadas. A estratégia é tornar o setor privado imune a riscos. Isso vem do FMI, do período do governo Fernando Henrique, que estabeleceu que as oportunidades para o setor privado deveriam ser reguladas sem riscos para o mesmo. É tudo definido em contrato.

Depois, não tem como o Ministério Público ou o Tribunal de Contas querer auditar. Já se for uma parceria com os municípios, é possível auditar. Essa é uma nuance importante. Serviços públicos são auditáveis por órgãos da esfera pública, visando a aplicação correta dos recursos. Já o setor privado, no momento em que existe um contrato, está livre disso. Nós temos instâncias reguladoras muito fracas. A Agergs pouco entende de saneamento.Ela teve sua origem ligada mais aos setores da telefonia, energia elétrica e rodovias.

Sul21: Além dessa proposta da PPP, também vem se falando sobre a possibilidade de privatização da Corsan, o que seria, inclusive, uma exigência do governo federal para a adesão dos estados ao chamado Regime de Recuperação Fiscal. Na sua opinião, essa é uma ameaça real?

Dieter Wartchow: Acho que sim. Estamos assistindo ao início de um processo que tenderá a migrar para outras cidades. A PPP também é uma forma de privatização. Quanto à privatização envolvendo a venda de ativos, eu entendo que esses ativos pertencem ao poder concedente, ou seja, aos municípios. Esse é outro elemento problemático na regulação desse serviço. Não se sabe direito qual é o patrimônio que pertence ao municípios e qual o patrimônio que pertence à Corsan. A

Corsan faz obras, deprecia e amortiza. Quem é que está pagando? As tarifas. No momento em que essas obras estão pagas, elas pertenceriam aos municípios, mas não é isso o que ocorre.

De fato, esse patrimônio que querem vender, usando recursos do PAC a fundo perdido, não pertence à Corsan. Está na lei que esses recursos pertencem ao município onde se fez o investimento, mas a Corsan os inclui em seus ativos. Isso é um labirinto e também é uma tarefa da regulação. A depreciação dos investimentos feitos é cobrada por meio do valor da tarifa. No momento em que eu deprecio um bem que eu construí, ele pertence a quem? Ao município, no caso. Essa é uma dúvida que permanece.

Sul21: Quais são as principais empresas privadas que estão operando hoje neste setor?

Dieter Wartchow: Essas empresas normalmente são corporações estruturadas na forma de um tripé. Elas têm um pé financeiro, outro que constrói e outro que faz a parte da advocacia. A Odebrecht era uma das grandes empresas que tínhamos aqui. O grupo JBS também queria entrar neste setor. Temos o Grupo Suez, que envolve empresas da França, Espanha e Canadá. Quem deve assumir essa PPP aqui no Rio Grande do Sul, provavelmente, é um grupo internacional.

Sul21: Várias cidades no mundo vêm revertendo processos de privatização que ocorreram no setor de água e saneamento, reassumindo o controle público desses serviços. Essa ofensiva do setor privado na área do saneamento aqui no Brasil é uma tentativa também de recuperar mercados perdidos?

Dieter Wartchow: Sim. A atual prefeita de Paris, Anne Hidalgo, fez disso um cavalo de batalha na sua campanha eleitoral e retomou os serviços. Assim como fizeram Berlim, Stuttgart, Dortmund, Atlanta, Buenos Aires, Córdoba e muitas outras. Cerca de 800 municípios de porte, em todo o mundo, reassumiram esses serviços em um período recente. As empresas viram que a resistência estava muito grande no Brasil e aguardaram. Agora, vem com tudo, contando com o apoio do governo Temer. A Cedae foi privatizada para equacionar o problema de caixa do Rio de Janeiro e não para resolver o problema do saneamento da cidade. Há liminares, agora, questionando esse

processo.

Sul21: Como resumiria, então, essa proposta de PPP feita pelo governo Sartori? Quem serão os principais beneficiados?

Dieter Wartchow: Essa proposta é um excelente negócio para o setor privado e para os acionistas da Corsan. O Estado detém 99,9% das ações da Corsan. No ano passado, o lucro líquido da empresa colocou R$ 240 milhões no caixa único. Já para os municípios, para os usuários e para o saneamento básico, há enormes riscos.

Sul21: Os prefeitos dos municípios atingidos por essa proposta têm consciência desses riscos?

Dieter Wartchow: Não. Eles não têm nenhum entendimento sobre o que está envolvido neste processo. Eles atuam segundo o comando político. O governador liga e está pronto. O mesmo ocorre com a maioria dos vereadores. Tenho participado de algumas discussões em câmara de vereadores e o debate ainda é muito marcado pela disputa partidária. Existe uma imaturidade e um desconhecimento muito grande em relação a esse tema nas câmaras de vereadores e nas prefeituras. É uma pena.

Sul21: Qual é a previsão de início de implementação da PPP?

Dieter Wartchow: A licitação deve ocorrer em janeiro e, se não houver nenhum questionamento por partes das empresas envolvidas, tudo deve ser resolver em poucos meses. O cronograma político deve acelerar esse processo. Esse é outro risco. Por que fazer isso agora, justamente em um ano eleitoral? Por que não debater mais com a população dos municípios envolvidos? Por que não se faz um plebiscito sobre esse tema? Afinal de contas, uma fatia representativa da Corsan pertence aos municípios.

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